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A Segunda Vinda

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Marina passava por uma noite difícil, mas não muito diferente das últimas em Fortaleza. Veja sempre o lado positivo, pensou. Deu uma mordida no pão seco que Matias, o rapaz magro de cabelos alourados, havia arranjado para ela. Pelo menos hoje não dormiria com fome.

Sentiu o bebê mexer e tentou se ajeitar sobre o papelão em que estava deitada, na calçada de uma grande loja no Centro. Há pouco tempo o relógio da Praça do Ferreira tocara as doze badaladas, e os carros passavam com menos frequência agora. No silêncio e no frio, ela começou a cantar uma antiga cantiga de ninar para seu bebê.

– Falta pouco agora, meu amor – sussurrou ela, passando a mão sobre a barriga pontuda. – Logo, logo a mamãe vai poder ver seu rostinho, e vai ficar tudo bem.

Ela começou a chorar, mas ouviu passos se aproximando.

– Calma. Sou eu.

Matias aproximou-se e estendeu a ela um lençol que deveria ter sido branco em alguma década distante. Ele era jovem, mas a vida nas ruas roubara-lhe a juventude. Seu rosto era enrugado e escuro, mas o olhar era carinhoso e preocupado. Um anjo, pensou ela aceitando o cobertor.

– Hoje cês vão ficar mais quentinhos – disse o rapaz. – Pode dormir que eu vou ficar olhando.

– Não sei o que seria de mim sem você, Matias – disse ela.

Ele sentou ao lado dela, mas mantendo distância. “Como ele é respeitador”, pensou Marina. Ela sabia que era bonita, e sabia que o rapaz gostava dela. Ele poderia ter se aproveitado dela. Mas sempre a tratou com muito carinho.

– Vou proteger vocês. E esse menino aí na tua barriga. Ele é especial.

Sim, a criança era especial. Mesmo que sua família não acreditasse no que ela dizia.

Terminou de comer o pão e deu um beijo no rosto de Matias.

– Me abraça? Está congelando aqui.

– Melhor não – disse ele.

– Tudo bem – falou a moça, mas não estava. Ela só queria se sentir protegida mais uma vez.

Marina deitou de lado sobre o papelão e tentou procurar uma posição confortável para a barriga. O bebê chutava muito, e ela imaginou-o como um grande jogador de futebol. Ou talvez alguém ainda mais importante.

– Talvez ele mude o mundo – sussurrou ela enquanto se cobria. – Deus sabe que é preciso.

Ela dormiu sem perceber. Ao seu lado, Matias admirava a beleza suave, a pele branca, os longos e sedosos cabelos castanhos. Fazia três semanas que a conhecia, e decidira que deveria cuidar dela e da criança que ela trazia.

Na primeira semana vazara o olho de um malandro que tentara se aproveitar dela. Dias depois dera três facadas na barriga de um dos muitos loucos que viviam perambulando pelo Centro, pois ele ficara extremamente agressivo quando vira aquela linda menina de dezesseis anos andando por ali em farrapos.

Após esses incidentes as coisas ficaram mais tranquilas, pois os outros moradores perceberam que Matias mataria qualquer um que se aproximasse da jovem mãe. E Matias não estava para brincadeira.

– Eu já matei um fardado – confidenciou ele à garota numa daquelas noites frias. – Ele tava batendo no Seu Nonô, o cego que fica na parada da César Cals. Pedi pra ele parar, mas ele ficava lá, rindo… tava possuído! Aí eu peguei uma barra de ferro e taquei na cabeça dele. Ele caiu, mas eu não consegui parar de bater. Aí, quando eu percebi que ele tinha batido as botas, passei uns meses sem aparecer aqui. Quando voltei, todo mundo sabia que tinha sido eu, mas ninguém me entregou. Agora eles me respeitam.

A menina Marina aparecera alguns meses depois apenas com a roupa do corpo. Fora expulsa de casa quando o pai descobriu que ela estava grávida e não acreditou na história dela. Realmente era algo incrível, mas já havia acontecido uma vez, não é? Por que não poderia acontecer de novo?

Um vento frio e forte começou a soprar do Leste. Cheiro de chuva e, logo, os pingos começaram a cair. Grossos e pesados, criavam respingos que batiam em suas pernas. Percebeu que Marina se encolheu de frio, pegou o papelão sobre o qual estava sentado e colocou-o sobre ela.

Sim, ele a protegeria. Contra tudo e todos. Se fosse preciso, mataria de novo. Por ela, e pelo bebê especial.

O sol estava quase nascendo quando o carro encostou. Um homem forte, de meia idade, desceu e gritou:

– Marina! Marina!

A moça despertou assustada. Conhecia aquela voz.

– Papai?

O homem se aproximou do local onde ela dormia. Matias estava de pé, faca em punho, pronto para se bater de morte com o estranho.

– Não, Matias, ele é meu pai! Guarde isso!

O rapaz guardou a arma desconfiado, mas manteve a postura rígida.

– Quem é esse marginal? – perguntou o homem.

– Ele cuidou de mim depois que o senhor me abandonou! – gritou a moça. – Ele não é marginal, é meu amigo!

– Ninguém tem amigos! Só a família!

– Onde estava a minha família todo esse tempo, Papai? Eu dormi na rua! Eu comi lixo! Eu passei frio aqui! Se não fosse o Matias…

O homem forte aproximou-se mais. Parecia preocupado.

– Ah, minha filha, eu me arrependo tanto do que fiz… eu não deveria ter feito isso! Mas sua mãe me fez ver que eu estava errado. Volte para casa, nós cuidaremos de você!

– Não vou voltar para onde ninguém acredita em mim, Papai! Não sou mentirosa!

– Podemos discutir isso depois, Marina… vamos, entre no carro. Deus, você precisa de um banho!

– Não quero ir!

O homem se adiantou e pegou-a pelo braço. Matias pulou com a faca na mão e por pouco não abriu um talho no braço do outro.

– Solta ela! Ela não quer ir!

– Não se meta, seu marginal!

– Eu te mato, filho da mãe!

– Parem! – gritou a menina. – Tudo bem, Papai, eu vou! Mas deixe o Matias em paz! E deixa eu me despedir dele…

– Não demore – disse. – Não quero ter que passar nem mais um minuto aqui nessa imundície.

Matias estava fora de si, mas Marina conseguiu se aproximar dele e o abraçou.

– Vai ficar tudo bem, meu querido – disse ela. – Ele é meu pai. Vai cuidar de mim.

– Ele é mau! – grunhiu Matias. – Ele te expulsou!

– Mas ele se arrependeu. As coisas vão ficar bem, não se preocupe. E obrigada por tudo.

Ela deu um beijo no rosto dele e percebeu que ele chorava.

– Quem vai te proteger agora? – perguntou ele.

– Deus vai cuidar de mim e da criança – falou a menina. – Adeus, Matias.

O rapaz chorava. Seus ombros tremiam enquanto ele suspirava alto. Marina caminhou até o pai e conversou com ele por alguns instantes, e voltou com um maço de notas.

– Aqui – disse ela. – Aceite isso como gratidão.

– Não precisa – disse o rapaz. – Não fiz nada por dinheiro.

– Por favor… por mim! Aceite!

Matias olhou no fundo dos olhos da moça e pegou o dinheiro.

– Pra comprar droga, seu merda! – gritou o pai da moça.

– Vá, linda – disse Matias. – Senão eu mato ele.

Ela o abraçou mais uma vez e entrou no carro.

A viagem foi feita em silêncio. Quando chegaram em casa, Dona Solange, chorando, a abraçou pedindo perdão. Aquilo nunca mais aconteceria com sua filhinha, prometeu ela.

Marina passou mais um instante ali e foi para o quarto. Tomou um banho quente demorado, vestiu uma camisola frouxa e confortável, deitou na cama e dormiu.

Acordou com o cheiro de comida. Estava faminta, e o bebê não parava de mexer.

A mãe a aguardava na cozinha.

– Venha comer, minha princesa!

Ela sentou à mesa e, à vista do prato de comida – feijão, arroz e carne moída –, lembrou de Matias e começou a chorar.

– O que foi, meu amor?

– Nada, mãe. – Enxugou os olhos e começou a comer. – Não lembrava que sua comida era tão deliciosa.

A mãe sorriu e passou a mão em seu rosto.

– Seu pai teve um sonho ontem à noite, princesa – disse. – Um homem todo de branco dizia que deveríamos te procurar e trazer de volta pois você estava falando a verdade.

– É claro que estou, Mãe! Eu nunca tive relações com ninguém!

– Agora eu sei, filha… mas antes… era difícil acreditar. Seu filho… meu neto! É ele quem estivemos esperando por todo este tempo!

– Acho que sim, mãe. Acho que é.

Dona Solange estava dividida entre risos e lágrimas. Ele nasceria em sua casa! Depois de tanto tempo de espera, todo sofrimento acabaria! O Inimigo seria derrotado pelo seu neto! Que maravilha!

A menina compartilhava parte de sua alegria, mas sentia–se infeliz pelo que o pai havia feito com ela. Será que ele achava que ela esqueceria tão facilmente a maneira estúpida com a qual ele a havia tratado? Ela era apenas uma criança perdida, e sabia tanto quanto ele o que tinha acontecido! Aquela gravidez havia sido uma surpresa para ela também! O sonho com o homem loiro vestido de branco só viera depois, quando ela pensara em abortar antes que descobrissem.

Mas agora ficaria tudo bem, pensou ela enquanto enxugava as lágrimas. Aqueles pensamentos negativos fariam mal para o bebê, pensou. Estava próximo o momento de tê-lo em seus braços, amamentá-lo, passar a mão em seu rostinho, sentir seu cheiro…

Passou o resto da tarde em seu quarto lendo seus antigos diários. Cochilou, acordou no início da noite e jantou com seus pais enquanto falavam amenidades, fingindo que estava tudo bem. Após a refeição, retirou-se para seu quarto e dormiu.

Acordou sentindo fortes dores. Contrações? Um líquido quente molhou a cama enquanto estava deitada. A bolsa rompera! Tentou gritar pelo pai, mas a voz não saía. Estava paralisada! Estaria tendo um pesadelo? Lera algo sobre isso na Internet, paralisia do sono? Não entendia, mas a dor era verdadeira. Sentia-se úmida entre as pernas e aquilo também era real. Tentou gritar mais uma vez, mas foi em vão.

A dor aumentou. Uma forte pontada na barriga pegou-a de surpresa. Quase desmaiou. Sentia-se sendo rasgada de dentro para fora. Seria essa a dor do parto? Estava desesperada e não podia fazer nada!

O ciclo de dores ficou mais intenso. Estava suada e sentia o cheiro do sangue. Era um pesadelo lúcido! Tentou se acalmar, mas aquela situação irreal deixara-a cega e confusa. O que estava acontecendo? O coração batia como um surdo em seus ouvidos.

Mais um estouro de dor, a maior de todas. Então sentiu-se vazia e aliviada. Conseguiu se mover um pouco, porém estava tonta. Fraca. A visão turva.

Arrastou-se um pouco para trás no colchão e apoiou suas costas na cabeceira. Ainda havia dor, mas o alívio que sentia encobria-a sem esforço. Foi quando ela viu o bebê entre suas pernas.

Mesmo coberto de sangue e fluídos, ele era belo. Estava com os olhos abertos, e ela podia reconhecer em seu rosto traços de sua própria beleza – o narizinho arrebitado, os lábios grossos. Parecia um anjo!

– Como é lindo meu filho – sussurrou.

Pegou o bebê nos braços e o amparou junto ao seio inchado e dolorido. Ela era mãe agora, isso era um fato. E ela já amava o bebê.

– Você vai se chamar Cristiano – disse enquanto ajustava a boca do bebê em seu mamilo.

A primeira sugada foi estranha. Dolorosa. Então a dor foi se tornando mais intensa. Ela tentou afastá-lo do mamilo, mas ele não soltava. Parecia que ele a mordia! Mas isso era impossível!

Ela olhou para o bebê – Cristiano – e percebeu que ele a encarava. Olhos de um azul claro profundo, estranhamente maduros.

Então ele sorriu, e ela percebeu que os pequenos dentes pontiagudos estavam manchados de vermelho.

Marina já não sentia mais dor. Mergulhara numa onda quente de torpor, como um banho no mar ao fim da tarde. Sentia uma mistura de medo e amor por aquela criança especial, que bebia sua vida para sobreviver.

Como num sonho distante ela sentiu que o bebê soltava seu peito. Uma vozinha fina e ainda hesitante soou dentro de sua cabeça:

– Acho que eu não sou quem vocês estavam esperando, mamãe.

Sorrindo, ele voltou a sugar.

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