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Abracadabras e Toques de Varinha | A magia nas mesas de RPG

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Você simplesmente conjura um relâmpago e rola os dados de dano ou é daqueles que se concentra, move os dedos de maneira graciosa e precisa e finalmente pronuncia cuidadosamente Fulminare para conjurar?

“Venha aqui, deixe-me lhe ensinar um truque ou dois…”

A magia é algo extremamente comum em jogos de RPG. A figura do velho de mantos com um cajado que é capaz de controlar os elementos ou a bela feiticeira com uma varinha para transformar homens em porcos é muito recorrente. Isso desde a mitologia antiga, com suas enormes manifestações de magia.

Nas palavras de Allan e Elizabeth Kronzek em sua obra The Sorcerer’s Companion, “ao longo de quase toda a história ocidental, as pessoas acreditaram de fato na magia e confiavam nas forças invisíveis e sobrenaturais para exercer poder sobre os outros ou para controlar o mundo natural”. Dos gregos com seus personagens capazes de controlar os elementos e transformar pessoas — sejam deuses como Hécate ou mortais como sua sacerdotisa Medeia — aos alquimistas medievais que tentavam transformar metal em ouro — do globalmente famoso Nicolau Flamel à raramente conhecida Maria, a Judia (embora até hoje se use seu processo de “banho-maria” nas cozinhas) —, muitos acreditavam no poder sobrenatural.

Com o passar dos séculos e séculos, os conceitos do que é feitiçaria passaram por mudanças, as ciências avançaram e grande parte das pessoas vê a magia como a forma que os antigos tinham de explicar o que ainda não compreendiam. Isto é, se não estiverem numa mesa de RPG!

Ingrid Beauchamp (Rachel Boston), uma bruxa que usa feitiços em latim na série Witches of East End.

A forma como os cenários interpretam a magia é tão variada quanto eles mesmos. Alguns, como os cenários de D&D e Tormenta, veem a magia como uma força que pode ser utilizada mediante estudo, talento ou fé. Outros, como Ars Magica, a colocam em todo o contexto medieval, como algo visto com maus olhos pela sociedade, um verdadeiro pacto com o diabo. As Crônicas de Avalon a colocam como superstição, basicamente, tanto que um dos avisos ao mestre é vetar qualquer magia que seja visualmente agressiva para a realidade. Já Tragoedia não chama as forças sobrenaturais de magias, mas de intervenções divinas e pensamentos de filósofos.

Seja por talento, aprendizado, fé, arte ou simples bênção, a magia permanece presente. Magos, feiticeiros, bruxas, druidas… O denominador comum de todos eles está em lidar com forças além da compreensão normal de alguém. Seja para o bem ou para o mal, está ali a capacidade de com um gesto ou palavra conjurar uma bola de fogo ou curar ferimentos. E muitos RPGistas — e orgulhosamente me incluo nesse grupo — tem um prazer especial em interpretar esses personagens.

Para quem está pela primeira vez interpretando um mago ou um clérigo, pode ser um pouco difícil entrar em contato com sua dramatização. De fato, é um pouco chato numa mesa quando um jogador simplesmente diz: “Eu lanço bola de fogo”, e rola os dados. Assim com um guerreiro sacando sua espada descreve seus movimentos ao avançar com ela em punho, a lâmina refletindo sinistramente a luz mortiça do pôr-do-sol, um mago também deveria descrever os gestos precisos, a sensação do poder correndo entre seus dedos e moldando suas palavras num Scutum arcanorum enquanto tenta se proteger. Claro, é minha humilde opinião de mestre.

O grimório da família Gardiner, repleto de feitiçaria, na série Witches of East End.

Uma das melhores experiências que tive com a magia nas mesas foi justamente quando comecei a incentivar entre meus jogadores a criar as próprias formas de utilizar magia. E, admitamos, por que não compartilhar um pouquinho da nossa experiência? Peço licença, agora, para focar em Tormenta RPG, ainda que muito do que se encontra aqui possa ser adaptado para outros cenários (inclusive, adoraria ver as adaptações que fazem). Nós, basicamente, usamos três formas para auxiliar a interpretação da magia.

Para os clérigos e druidas (e rangers e paladinos que fazem esta opção), costumamos usar orações. Os jogadores, a maioria na hora, criam orações e apelos para sua divindade para que interfiram no mundo e os usem como canal de magia. Assim como acontece com os arcanos, as divindades geralmente interferem nas palavras e tom das orações. Nosso druida de Allihanna vem com orações que são pedidos fervorosos do tipo: “Mãe, restaure sua saúde!”, para curar ferimentos. Já Keenn, o deus da guerra, preferiria algo mais agressivo, como: “Keenn, dai-me a arma da vitória!”, para conjurar uma arma espiritual.

Os abençoados simplesmente dão ordens. Eles receberam o poder dos deuses, simplesmente, e se sentem no direito de impor sua vontade às bênçãos que receberam. Seja qual for a divindade que lhes deu o dom da magia, é sua força interior que lhe concede o poder, portanto é muito normal vê-los com: “Proteja-me do mal!”, para escudo da fé, sem se dirigir a ninguém em específico.

Os bardos variam bastante. Como sua magia vem da arte que praticam, cada um tem sua própria forma de conjura. Em nossa mesa, nossos dois bardos — um músico e uma atriz — têm formas muito distintas. Enquanto o músico conjura suas magias com rimas, a atriz usa passagens de livros e contos em suas conjurações (uma sacada incrível da jogadora, a quem tiro meu chapéu).

Com magos e feiticeiros, costumamos usar fórmulas em latim para as magias arcanas. Usar línguas antigas dá um tom sobrenatural para o mago, principalmente se combinados com gestos com as mãos, uma batida do cajado no chão ou um floreio da varinha. Além disso, feiticeiros normalmente usam verbos na primeira pessoa do singular, como Creo ignem (“eu crio fogo”) enquanto magos preferem os mesmos verbos no infinitivo, como Ignem creare (“criar fogo”). Por quê? A resposta é bem simples.

Em Tormenta, feiticeiros possuem o dom inato, a capacidade de realizar magia sem tanto esforço. É sua personalidade que o ajuda a moldar a realidade. Os magos, por sua vez, aprenderam através de estudos, fórmulas herméticas compiladas em velhos grimórios e tomos tradicionais. É sua mente e sua lógica que os faz usar magia. A escolha dos verbos e substantivos vai geralmente ao estilo do jogador e do arcano (um especialista em encantamentos utilizaria palavras diferentes de alguém dedicado à necromancia, por exemplo).

Ronald Weasley (Rupert Grint) e sua varinha. No mundo de Harry Potter, praticamente qualquer magia precisa de uma.

As palavras místicas em línguas estranhas é algo muito comum em nossa cultura. Os mais diversos livros e séries nos mostram a magia como algo tão fora de nossa rotina que até mesmo suas palavras deveriam nos ser estranhas. Mas, é claro, isso não é regra. A série Witches of East End pode usar o latim como base de suas magias (e as línguas nórdicas já na segunda temporada), mas em Charmed as palavras moldam a magia com base em rimas.

No fim das contas, tudo depende do cenário em que você se encontra. Em Tormenta teria até um pouco de graça usar a tradução dinamarquesa de “só mais cinco minutinhos” para conjurar sono. A deusa da magia, Wynna, é descrita em muitos suplementos como “uma deusa um tanto maluquinha”, nas palavras dos autores. Num cenário mais sério, como a Europa Mítica de Ars Magica, seria mais difícil vermos esse tipo de coisa.

Mas a magia não se limita apenas às palavras mágicas. O clássico D&D traz três componentes básicos de cada magia: o verbal (as palavras da conjuração), o gestual (os movimentos necessários) e o material (ingredientes usados combustível para a energia arcana), por vezes acompanhados de um foco (um objeto, no geral, para ajudar na concentração). Para a magia alarme (O Livro do Jogador 3.5, pág. 169), por exemplo, é preciso, além das palavras e gestos, um foco: um pequeno sino e um fio de prata a ser enrolado nele para que a conjuração se complete. E tudo isso é bastante razoável quando paramos para pensar que certas tradições antigas utilizavam justamente esses três estágios para suas artes mágicas.

Charles Meade (Gale Harold) usa cristais para utilizar magia no seriado The Secret Circle.

No mundo de Harry Potter, da britânica J. K. Rowling, as varinhas são quase que indispensáveis para lançar feitiços (embora nos filmes, Alvo Dumbledore use várias vezes apenas as mãos para dar vazão à mágica). O uso de palavras mágicas é dispensado na maior parte do tempo tanto em séries literárias, como A Trilogia do Mago Negro de Trudy Canavan, quanto em seriados modernos, a exemplo de Once Upon A Time, da BBC. Em Charmed e Harry Potter muitas vezes são necessárias apenas poções (das poções de derrota das irmãs Halliwell ao soro da verdade do professor Severo Snape).

Poções, varinhas e cajados, itens mágicos tão cobiçados por jogadores em mesas, são muito comuns para praticar magia desde tempos imemoriais. Na mitologia grega, Circe e Medeia eram conhecida por suas poções mágicas e Hermes tinha seu caduceu, que muitos consideram ser sua varinha ou cajado.

As mesas de RPG também têm isso, não apenas por parte dos jogadores, mas das próprias regras. O sistema D20, o mais comum, diz que para conjurar uma magia é preciso ser capaz de falar e gesticular apenas com uma das mãos, mas dá ferramentas para ignorar isso através de talentos metamágicos. Gasta-se um pouco mais de energia para ter efeitos diferentes na conjuração: Magia sem Gestos e Magia Silenciosa, ambos auto-explicativos. Existem bastões com efeitos mágicos capazes de permitir a um conjurador ignorar componentes verbais ou gestuais e habilidades para ignorar a necessidade de um componente material (como o pó de diamante no valor de no mínimo cinquenta peças de ouro para se conjurar dificultar detecção em D&D).

Poções, como as feitas por Regina Mills (Lana Parilla) em Once Upon A Time, também são formas de magia.

Os ingredientes de poções mais clássicos, olho de salamandra e perna de sapo, foram introduzidos por Shakespeare em sua peça Macbeth, junto com outros ingredientes no mínimo incomuns. Seus ingredientes e até mesmo as falas da cena das três bruxas foram incorporados à trilha sonora de Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban pelo compositor John Williams sem praticamente nenhuma alteração. E foram, mais uma vez, trazidos ao RPG: o MMORPG Runescape utiliza olho de salamandra como ingrediente principal de suas poções.

E como falar de ingredientes principais sem nos lembrar saudosamente do Tio Chan, de As Aventuras de Jackie Chan. Um perfeito mago (e lutador de artes marciais), tinha como marca registrada um baiacu seco e uma lagartixa velha como instrumentos de magia, além de seu mantra em cantonês, “Yu Mo Gui Gwai Fai Di Zao”, que significa algo como “demônios malignos e espíritos malevolentes, vão embora”. Há componentes materiais, na forma de suas poções, instrumentos mágicos de foco e as palavras mágicas, sem contar em todos os rituais que fazia para banir os demônios de volta às suas dimensões.

Viviane (Anjelica Huston), a Senhora do Lago, pede à Deusa uma interferência mágica pela magia cerimonial em As Brumas de Avalon.

Tudo isso reflete à magia cerimonial, algo um tanto incomum em RPG de fantasia medieval, mas que está mais presente em cenários de horror ou onde a magia é limitada. Crônicas de Avalon, por exemplo, é baseada nas obras literárias de Bernard Cornwell (As Crônicas de Artur) e Marion Zimmer Bradley (As Brumas de Avalon). Nesses cenários, a magia apenas é obtida através de rituais muito precisos, mantidos em tradições seculares.

A magia pode ser vista de muitas formas. Comum, misteriosa, prática, espiritual, hermética, científica, artística, antiga ou moderna… E isso desde a antiguidade! Então, diga-me, seu mago já usou aquele feiticinho pra esquentar o café hoje ou prefere guardar a grande arte para fins mais nobres como expulsar os inimigos do reino?

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