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Coringa | Crítica (COM Spoilers)

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“Coloque um sorriso nessa cara!”

Fui assistir Coringa com coração e mentes abertos, mesmo considerando que  a visão do diretor Todd Phillips em sua releitura para um maiores vilões da cultura pop, pudesse não me agradar. Mas, antes do fim do primeiro ato, o filme já havia deixado muito claro que se tratava de um produto muito diferente de seu gênero, com uma proposta tão clara quanto perturbadora.

Coringa conta a história de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), um pária da sociedade com problemas psicológicos que trabalha como palhaço e cuida de sua mãe doente, enquanto sonha em fazer carreira como humorista.

Já nos seus primeiros minutos o filme dá mostras de como é a vida miserável de nosso protagonista: isolado da sociedade, ignorado pelo estado, desapontado em seus sonhos, execrado em todos os meios em que vive. Impossível não se compadecer de Arthur mediante tamanha frustração.

De forma cadenciada o roteiro constrói o dia-a-dia doloroso de Arthur. A maneira como o personagem vive a margem de uma sociedade que, em todas as suas camadas e classes sociais, não fazem a menor questão de notá-lo. Isso se reflete claramente na cena do ônibus, onde a falta de compaixão aos menos favorecidos fica evidente.

Joaquin Phoenix: um sucessor à altura do legado do Heath Ledger

Sem arcos paralelos o roteiro se dedica a desenvolver, em tempo integral, tanto a personalidade como todo o entorno do protagonista e, a partir deste desenvolvimento, o longa evolui apresentando seus temas complexos e todo o sofrimento que acomete o protagonista, os sonhos e delírios de sua mente perturbada e seu desejo claro de ser notado por esta sociedade que ignora permanente pessoas desajustadas, desfavorecidas e perturbadas como Arthur. Esta exclusão é tão grande, que o próprio Arthur, por vezes, não tem certeza se ele realmente existe.

A partir do segundo ato o ponto de virada do personagem se inicia, a violenta cena do metrô, seguida da dança em estado de êxtase, o marco inicial da jornada obscura do personagem, quando o próprio Arthur processa em sua mente doentia que violência e morte podem ser a saída para acabar com uma vida de abusos e sofrimento que o personagem sofre desde a infância.

E essa é somente a ponta do iceberg de temas delicados e complexos que o filme aborda.

A própria Gotham City é praticamente um personagem do filme. Uma cidade obscura, com detalhes e a frieza que compõem uma metrópole real, com o agravante no filme de uma greve de lixeiros que vem deixando a cidade em um estado caótico, onde os nervos da população estão à flor da pele.

A dança no banheiro da estação: A insanidade começa a dominar a mente de Arthur

Mas, o que mais chama a atenção no roteiro, é o seu simbolismo. Desde os primeiros minutos o filme se propõe a discutir questões sociais e dilemas morais inserindo o espectador em uma onda de reflexão pouco cômoda.

Claramente, Coringa é um filme sobre a falta de humanidade e compaixão para com que aqueles que, assim como nosso protagonista, são desafortunados e carentes de auxílio ou de, ao menos, o mínimo de atenção. Ao longo de todo o filme a única coisa que fica realmente clara nas intenções de Fleck é seu desejo de ser notado, seja da maneira como for.

O filme trata destes assuntos, na maior parte do tempo, sem quase nenhuma sutileza. Expondo a audiência a um sentimento de desconforto ininterrupto ao acompanhar a trajetória sofrível do protagonista, expressa, por exemplo, nas risadas assustadoras de Arthur, fruto de um distúrbio psicológico que faz com que, mesmo em momentos de dor e tristeza, a única forma que o personagem consiga externar tais sentimentos seja expressando uma gargalhada inoportuna e constrangedora que, ao invés de simbolizarem a loucura do Coringa, estão muito mais associadas a agonia constante do protagonista.

Entre os muitos acertos do roteiro, seu caráter interpretativo talvez seja o maior deles. Por mais que certos grupos tentem “sensacionalizar” a questão, o brilho do filme está justamente em deixar lacunas abertas, detalhes sutis que levam a caminhos interpretativos bem diferentes. Permitindo o desenvolvimento de teorias sólidas colocando em dúvidas se tudo aquilo realmente aconteceu ou se não se trata de mais uma das muitas alucinações da mente perturbada de Arthur. Curiosamente, o filme não responde a estas perguntas, contudo ele entrega detalhes que validam as duas situações, basta nos atentarmos a maneira de como tudo é construído até o desfecho no terceiro ato.

Arthur chorando ao se maquiar, referência direta ao clássico Luzes da Ribalta de Charles Chaplin

Essa ambiguidade se evidencia ainda mais na figura de Thomas Wayne (Brett Cullen). Muito longe do símbolo de virtude do qual costumeiramente é retratado, o pai de Bruce representa a aristocracia de Gotham, é o retrato de uma faixa da sociedade que prega o apoio aos menos favorecidos, mas é incapaz de se colocar no lugar dos mesmos, tão pouco de entender as motivações do descontentamento do povo, acabando por até, de certa forma, inflamar a revolta da população no desfecho do filme. No enfrentamento entre Thomas e Arthur na cena do banheiro do cinema (em uma sessão do clássico Tempos Modernos de Chaplin), fica evidente que Thomas não é uma pessoa boa, e que toda a origem do personagem e a mentira contada por sua mãe, podem ter sido de alguma forma manipulações de Thomas, algo relativamente simples para alguém com seu nível de poder e influência, e que jamais poderia deixar vir à tona a notícia do filho fora do casamento, ainda mais um filho como Arthur.

Ainda que o roteiro entregue evidências de que tudo o que Arthur descobriu seja verdadeiro, há pequenas nuances que podem corroborar este fato ou não, afinal o que dizer, por exemplo, da dedicatória no verso da foto? Ou da suposta tentativa de suicídio na geladeira? Trata-se de um arco fechado, mas que abrem muita margem para discussões e especulações.

Brett Cullen: um Thomas Wayne muito diferente

A complexidade do enredo demanda um ritmo correto na narrativa, que não é em momento algum arrastada, mas é de certa maneira propositalmente lenta, para entregar a imersão adequada ao público de como é a mente perturbada e distorcida do nosso protagonista.

Joaquin Phoenix, é com certeza o maior dos muitos acertos deste filme. Ainda que distante de versões anteriores do cinema, TV e quadrinhos, seu personagem tem, sim, elementos que remetem a versões cultuadas do vilão em diversas mídias da cultura pop.

A performance de Phoenix, e a entrega do ator, vão muito além da transformação física. O desempenho do ator denota o sofrimento constante da mente perturbada de seu personagem, sem deixar de destacar a maldade enraizada nele. Controverso, o personagem consegue, ao mesmo tempo, despertar pena, medo, raiva, empatia… Enfim, ao longo das suas duas horas de filme, onde o protagonista está presente em praticamente 100% das cenas, somos bombardeados por uma onda poderosa de sentimentos contraditórios, fruto da atuação brilhante de Joaquin Phoenix, que entrega um desempenho absurdo não só na execução dos diálogos, mas na expressão corporal, e principalmente no efeito psicológico. Seguramente Phoenix deve concorrer ao Oscar de Melhor Ator.

O restante do elenco também responde muito bem, cada qual com seu papel dentro da trama representando um ponto de transição, de afronta ou de mudança para o protagonista como, por exemplo, quando descobrimos que a relação entre Arthur e Sophia (Zazie Beetz) não passa de mais um delírio da mente de Arthur, o que, aliás, abriu o enorme precedente para discutirmos as muitas questões interpretativas do roteiro esboçadas anteriormente.

Robert De Niro, quase um retorno ao Rei da Comédia, de Scorsese

Robert De Niro vive o apresentador Murray Franklin, uma referência para o sonho de Arthur de se tornar um comediante, mas também visto pelo protagonista em sua mente doentia como uma referência de figura paterna. É a decepção com Murray que culmina no desfecho da trama no terceiro ato, iniciado pelo surpreendente assassinato de Murray ao vivo, em rede nacional pelo Coringa. Aliás, foi o próprio Murray quem batizou o palhaço. O assassinato de Murray é, com certeza, o momento mais pesado e mais cheio de significados do filme, é onde o tom de decência e humanidade que o próprio espectador deseja impor a loucura do Coringa acaba, em meio àquela sequência que todos já sabiam como terminaria.

Contudo a qualidade do filme não está atrelada somente ao brilhantismo da atuação de Joaquin Phoenix ou ao bom desempenho do restante de seu elenco. Tecnicamente Coringa é quase uma obra de arte, a começar pela fotografia. Seus movimentos de câmera e enquadramentos alternam tomadas claustrofóbicas e planos mais abertos para expor momentos da mente perturbada de Arthur.

De início, as cores são frias e monótonas. O tom é cinzento e sombrio, algo que muda radicalmente à medida em que o Coringa vem a tona. Os cenários são inundados por uma luminosidade constante junto a uma paleta de cores muito mais vivas e vibrantes. Aliada a fotografia, a trilha sonora triste e melancólica contribui para o ambiente desconfortável presente em todo o filme.

A direção de Todd Phillips é surpreendente! Abertamente um quase discípulo de Martin Scorsese, o diretor até então havia ganhado notoriedade  por filmes como “Se beber não case!” e “Cães de Guerra”, de modo que seu trabalho numa obra tão complexa e repleta de camadas a serem exploradas é algo a se destacar. 

A emblemática cena da escada

Coringa é um filme repleto de referências. Mesmo não se inspirando em nenhuma HQ especifica, ficam evidentes as referências aos quadrinhos icônicos “A Piada Mortal” (Alan Moore) e “Cavaleiro das Trevas” (Frank Miller), a trilogia Nolan, aos clássicos Taxi Driver e O Rei da Comédia (ambos dirigidos por Scorsese) entre outras.

E não podemos encerrar o texto sem mencionar o caráter político e, sim, ele é um filme político, sim. Porém não é um filme partidário. Muito menos esquerdista, nem tão pouco Marxista. Já que o Coringa é um só um pretexto, um conceito, um símbolo para a anarquia que toma conta das ruas de Gotham, fruto na verdade do sistema corrupto e opressor que rege a cidade.

Classificar o filme como incentivador da violência é um exagero enorme, já que o filme em momento algum faz apologia a esta prática e, visualmente falando, é muito menos violento que muitos outras obras adoradas pelo público. Até a escolha da trilha sonora, demasiadamente importante para a composição de toda a atmosfera desconfortável proposta pelo filme, esteve cercada de polêmica.

Na verdade, Coringa incomoda principalmente por escancarar uma sociedade perversa muito, mas muito semelhante a nossa sociedade atual. O protagonista deste filme nada mais é do que produto de um sistema se voltando contra este mesmo sistema.

O retrato do maníaco psicótico não é a principal mensagem do filme mas, sim, a afirmação categórica de uma sociedade cruel e destrutiva que, há muito, parece ter esquecido o que significam as palavras humanidade e compaixão. E não é nenhuma alienação afirmar o quanto a apodrecida sociedade de Gotham, em todas as suas camadas, se assemelha e muito com a nossa, nos dias atuais, onde qualquer noção de compaixão e diálogo parece ter se perdido.

Duvida? Então se recorde se você ou se alguém em sua sessão riu na cena em que o anão, depois de testemunhar um assassinato cruel cometido pelo Coringa, tenta desesperadamente abrir a porta para fugir de Arthur.

Você riu? Alguém riu na sua sessão? Tire suas conclusões.

Coringa é um filme complexo, simbólico e interpretativo, uma releitura única, sombria e penosa, muito próxima da nossa realidade abrilhantada por uma atuação impecável de Joaquin Phoenix. Seu subtexto político e a loucura explicada do protagonista contribuem para entregar um dos melhores filmes de 2019, fechado em todo o seu arco, com um final perturbador e totalmente aberto a interpretações.

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