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Dados Coloridos e Fichas Cor-de-Rosa | Representatividade e Fantasia Medieval

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A Dragão Brasil, na sua edição 117, veio falando sobre a diversidade e a representatividade no mundo geek e citando a série de jogos Dragon Age. E me pôs a pensar: como é isso nas mesas de jogo? Como mestres e jogadores veem isso? Escrever um texto sobre isso é um desafio. É um assunto polêmico, mesmo quando não deveria ser. Afinal, desde que você derrote o dragão, não importa se você é uma meio-orc guerreira ou um bardo transexual… Ou será que importa?

Infelizmente, grande parte do meio geek possui um preconceito forte, seja ele antifeminista, machista, racista ou lgbtfóbico (ou uma combinação de tudo isso). A ambientação medieval é colocada geralmente com todo o pensamento retrógrado contra as minorias sociais, seja em jogos ou em mesas. Mulheres, negros, LGBT… Parece não haver espaço pra gente nesse meio. Somos obrigados a agir como heróis: lutar pelo nosso espaço.

Morgana (Katie McGrath em Merlin), uma das mais clássicas histórias da literatura mundial traz uma mulher como uma das mais poderosas magas.

Existem jogadores LGBT, existem jogadores negros, existem jogadoras mulheres. Então por que diabos não temos mais personagens que representem também essas pessoas? Dragon Age veio revolucionando em muitos sentidos. Colocou as mulheres em pé de igualdade com os homens, sem as armaduras hipersexualizadas ou papel secundário, mas ativamente ligadas ao enredo e com profundidade. Possui personagens dentro da temática LGBT, com dois personagens bissexuais completamente diferentes entre si, saindo um pouco dos estereótipos que vemos por aí (da pessoa que simplesmente quer ficar com tudo e com todos). Seus personagens negros são igualmente cheios de camadas, profundidade e complexidade, não meros secundários que podem ser descritos em poucas palavras como “a pirata negra”. Mulher, negro ou gay não são os adjetivos que definem os personagens. Eles não se resumem a isso. E não é assim que deveria ser?

“Mulher, negro ou gay não são os adjetivos que definem os personagens. Eles não se resumem a isso.”

De uma forma geral, vejo o número de mulheres e LGBT nas mesas e grupos de RPG aumentando. Um dos grupos de que faço parte, os Dragões da Tormenta, têm mulheres e gays entre seus membros mais ativos. O próprio cenário de Tormenta já inclui algumas quebras de estereótipos: o atual sumo-sacerdote de Khalmyr líder da tradicional Ordem da Luz, uma ordem de cavaleiros dedicados ao Deus da Justiça, é ninguém menos que Allen Thoren, um homem de caráter e honra inquestionáveis que, ora, vejam só, é um negro; a rainha-imperatriz é Shivara Sharpblade, soberana de três reinos e líder da maior coalizão do cenário, dona de um poder político, militar e financeiro quase inigualáveis; um dos novos itens mágicos do Manual do Malandro é nada menos que um robe do arco-íris (com magias arco-íris e muito amor livre) e as roupas são totalmente livres de gênero (ou seja, qualquer um pode usar qualquer uma delas); os próprios romances incluem personagens LGBT, mesmo que em insinuações (preste atenção em Camille e Vanessa, de O Crânio e o Corvo).

Allen Toren Greenfeld e Shivara Sherpblade, de Tormenta RPG. Ele detém poder político e eclesiástico. E é negro! Ela é a Rainha-Imperatriz de todo o reinado. Além de liderar suas tropas em combate contra a maior ameaça do mundo.

Ainda assim, vejo gente torcendo o nariz à representatividade no meio geek. A maior crítica entre os narizes torcidos é de que as empresas andam se vendendo ao “politicamente correto”. A justificativa, principalmente em cenários medievais, é que “na época não existia” ou “era diferente”. Sem querer entrar numa longa discussão a respeito, não é bem assim. Podemos citar Leonardo da Vinci, Eduardo II da Inglaterra e Margarida Borràs só por volta dos séculos XIV e XV só entre os personagens bissexuais e transexuais da História.

“Todos têm a possibilidade de serem heróis ou vilões.”

Se o gay é visto apenas como o alívio cômico, a mulher é a eterna donzela indefesa todo o tempo e o negro vai ser sempre o bruto secundário, vai mais e mais perpetuar os estereótipos e dar respaldo aos pensamentos mais conservadores. A maneira com que vemos a situação e lidamos com ela pode alterar de maneira positiva ou negativa a sociedade (como o efeito borboleta de uma decisão em Until Dawn). Para nós, nos ver representados em um livro ou em um game, nos faz sentir parte da sociedade nos demais segmentos. Não é só o homem cis-hétero branco que pode ser o herói. É o personagem trans, o personagem negro, a personagem feminina, os personagens não-héteros… Todos têm a possibilidade de serem heróis ou vilões.

Rainha Guinevere (Angel Coulby), uma das mais famosas soberanas da literatura é negra em Merlin, da BBC. Finn Jones como Loras Tyrell em Game of Thrones, um personagem homossexual em fantasia medieval. Isabela, de Dragon Age, mulher, negra, feminista e bissexual.

O problema da atual representação das diversidades (seja de gênero, sexual ou racial) é que muitas vezes é colocado apenas o estereótipo da mulher fútil, do gay engraçado e do negro em situação de servidão. Então por que a dificuldade com a representatividade de outros grupos? Sem querer gerar muita polêmica (algo difícil pela própria natureza desse singelo texto), o estabelecimento de padrões da sociedade leva a um certo “tradicionalismo” em seus diversos segmentos, o que inclui o universo geek. E toda tradição reage quando as coisas começam a mudar. É fácil torcer o nariz quando o que você vê na tela ou nas páginas é você ou algo que você representa. Ver a si mesmo representado é importante, dá uma sensação de pertencimento à sociedade, algo que a maioria das pessoas que pertencem às minorias não costuma sentir. A mídia, como um propulsor de informações e influência de massa, tem um papel extremamente importante na divulgação de personagens fora do padrão para que pessoas fora do padrão também possam se identificar com eles. Ela pode quebrar preconceitos ou fortalecê-los, dependendo da forma que os coloca.

Mesmo com Loras Tyrell (As Crônicas de Gelo e Fogo), Morgana e Guinevere (Merlin) e Isabela (Dragon Age), vemos os personagens LGBT, negros e mulheres sendo ainda vistos como coadjuvantes ou reduzidos simplesmente a sua condição de minoria. Ainda assim, é possível ver um avanço, mesmo que pequeno e longe da perfeição, que nos dá uma certa esperança de que ao mundo geek chegue a simples realidade de que ser fora do padrão é simplesmente ser humano (ou elfo, anão, halfling…). Afinal, a gente também pode ser herói. Só não pode largar uma batalha pra rabiscar pergaminhos enquanto o ladino é esmagado por um dos grandes inimigos! Mas isso é uma outra história…

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