Contos

Do-Cocó

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Dor. Posso sentir a água entrando em meus pulmões. Tento me mexer mais meu corpo está letárgico. Meu espírito não quer desistir mas o corpo simplesmente não reage. A água parece pequenas agulhas descendo pela garganta e pelo nariz. As plantas enredam meu corpo, como tentáculos vivos. É assustador. É como se eu fosse capaz de assistir minha própria morte, e ao mesmo tempo, senti-la.

Há quantas horas estou aqui, ou seriam dias? Faz muito que perdi a noção do tempo, mas o mínimo de percepção que eu tenho do mundo que me cerca me diz que já deveria ter morrido. Será que isso é morrer? Será que a eternidade para mim será um mergulho nas águas fétidas e poluídas desse rio?

Cada vez mais não me sinto como algo que caiu na água, pareço ter me tornado parte dela. Será que em vez de morto estou louco?

– Alguém me ajuda!!!! – essa voz não partiu de mim. Tem alguém em perigo e eu não posso ver, não posso me mover.

– Cala boca sua puta se não eu te furo! – A segunda voz é áspera, agressiva e estranhamente familiar.

Tenho a estranha sensação de já ter visto aquela cena.

– Eu queria só teu celular, mas só porque tu gritou agora a gente vai se divertir aqui. – Ele mentiu. Não sei como, mas sei que ele estava mentindo. Ele não queria só o celular desde o início.
– Por favor me deixa em paz, toma minha bolsa tem tudo ai. Eu te dou as senhas dos cartões, mas pelo amor de Deus não faz nada comigo. – Ela suplicava, sua voz embargada pelo choro.

– Vou te mostrar por que era pra tu ter me respeitado sua safada! – dizia a voz áspera e uma raiva crescia dentro de mim.

– Aqui tu vai gritar e ninguém vai te ouvir! Aqui tu vai gemer! – senti que eles estavam mais próximos, ainda sim, não podia vê-los, será que estava cego?

– Por favor não fa… – a voz é abafada por um baque, momentos depois, sinto o sabor do sangue dela tocando na água.

Escuto o barulho de tecidos sendo rasgados, baques surdos de golpes, pequenos gemidos e suplicas, gritos de dor e de desespero.

Lá estou eu, testemunha da violência e nada pude fazer, a todo momento aquilo tudo me parece tão familiar, aquela voz, aquela violência. Eu não posso deixar aquilo se repetir. Aquilo o que? Tento me mover. Eu quero ver. Eu preciso ver o que está acontecendo.

De repente se faz luz. A luz da lua ilumina, mas é muito pouco, por causa das nuvens. Não muito longe eu vejo as formas, ela caída de bruços, ele despindo-se sobre ela. Meus olhos parecem cortar a escuridão, o que antes era cegueira completa se tornou uma poderosa visão.

Ele à xinga, bate, humilha. Ouço os carros na avenida logo ao lado, mas eles estão fora do campo de visão de qualquer transeunte. Eu estou no rio, mas não vejo meu corpo, não há nada que represente o que sou.

– Por tudo que é sagrado não faz isso comigo… – a súplica dela lacera meu coração. Não posso deixar isso acontecer.

Sinto braços e pernas. Depois de mais alguns segundos sinto o corpo.

Ele está sobre ela, a fúria em mim cresce por não ter impedido o início, mas ainda posso pará-lo. Eu sei que o vai acontecer, eu já vi isso, mas onde?

Nado até eles estico meus braços eles tão cobertos de plantas, com meus braços e pernas envolvo o corpo dele e o puxo para água.

– Que porra é essa? – ele consegue dizer antes deu tragá-lo para o rio. Escuto um grito da moça antes de sumir de volta na água.

Ele luta, percebo que ele saca sua faca e golpeia meu corpo, mas nada importa, nada que faça irá me fazer soltá-lo agora, morreremos os dois aqui na água.

Durante pouco mais de um minuto ele luta, vejo em seus olhos o terror ao me olhar, ele solta todo o ar que tinha do susto, se debate com todas as forças mas é em vão, o meu abraço é letal, minha vontade inabalável. Seu olhar é tão familiar, ainda mais familiar é a sensação dele enfiando a faca em meu corpo. Dessa vez não há ferimento. Houve outra vez?

Ele para.

O mantenho submerso mais algum tempo por garantia, quando finalmente solto seu corpo inerte, ele afunda como uma pedra para um fundo do rio.

Olho para a margem ela está lá, estática olha para o rio como se algo fosse sair de dentro e tragá-la. Escuto seu coração e ela está assustada demais para se mover. Lentamente me dirijo para lá, sinto o cheiro suave de seu perfume misturado ao medo.

Quando emerjo da água ela me olha de cima a baixo, seu coração acelera de uma forma violenta, ela está mais assustada do quando o sujeito estava sobre ela.

Ela grita e começa a correr.

– Não vou te fazer mal moça. – eu digo seguindo ela.

Ela vai em direção a rua, eu a persigo, ela pode correr para avenida e ser atropelada.

Já consigo ver a luz dos postes iluminando a rua, os faróis de carro passando, uma sirene de polícia tinge a orla da mata. Mesmo ao longe escuto a conversa entre os dois policiais.

– Mais um carro abandonado aqui.

– É a segunda vez essa semana. A gente não tinha mandado fechar esse buraco na cerca, tem gente usando para assaltar. Ainda não acharam as vítimas do outro.

– É o pneu tá furado com um pedaço de pau preso. – disse o policial. Nessa hora eu me lembro de quase perder o controle do carro. Não era hora para lembranças.

Ela atravessa o buraco na cerca verde, eu sigo junto para explicar o ocorrido (à)a polícia, eu matei um homem, mas foi legitima defesa.

Quando eu saio da mata pela abertura da grade, foi feita para dificultar os assaltos mas estava danificada. Vejo ela falando com os policiais, coloco minhas mãos para o alto, não quero causar confusão.

No momento que coloco meu pé na calçada, vejo o carro parado com o pedaço de pau na roda, o triângulo, sou tragado por uma lembrança.

***

Desço do carro, a droga do pneu tá furado com um pedaço de pau grudado.

– Que porra de brincadeira de mal gosto. Amor, o pneu furou, tenho que trocar. – digo para ela, olhando em volta no lugar mal iluminado.

– Meu deus logo aqui. – ela disse preocupada.- Não se preocupa vou trocar rapidinho. – tento tranquilizá-la, mas estou com medo também, já passa da meia-noite.

Eu abro a mala pego os apetrechos para trocar o pneu, ela fica parada ao meu lado, linda, com seu vestido vermelho.

– Assim você me desconcentra.

– Deixa de ser bobo e faz logo isso, aqui é perigoso.

Começo a afrouxar os parafusos para tirar o pneu.- Amor me dá uma toalha que tem no porta-malas. – digo estendo a mão e não recebo resposta.

Me viro e ele já tá com a faca no pescoço dela. Seus olhos vidrados.

– Calma cara não precisa disso.

– Bora! Bora vem comigo ou eu corto a garganta dela aqui.

Eu o acompanho até um buraco na grade que eu não tinha visto, apenas um carro passa por nós, torço para ele ter notado e chamado a polícia. A gente entra mata a dentro, tudo vai ficando mais escuro o tempo todo ele a ameaça.

Finalmente paramos na beira do rio.

– Calma cara a gente vai te dar tudo, não precisa de violência, até ajeito o carro para você ir nele.

Ela a joga de lado e corre em minha direção, sequer tive tempo de reagir. Sinto a faca entrando no meu peito, sinto uma segunda facada no estômago, depois não sinto mais nada, nem o frio da água quando ele me empurra para o rio.

Fico ali boiando. Eu escuto tudo que ele faz com meu amor antes da consciência me deixar.

***

Quando volto o policial está gritando e apontando a arma em minha direção.

– Que porra é essa Lima? – pergunta ele para o colega que também aponta para mim assustadíssimo. A moça só chora de lado aterrorizada.

– Calma oficiais é tudo um mal entendido. – tento explicar mas em resposta tudo que recebo são tiros, sinto as balas perfurarem o meu corpo, mas elas parecem não me machucar, exatamente como a faca.

Fujo de volta para a mata, eles não me seguem mas os escuto pedindo reforços. Corro de volta para a água, sem entender por que fui atacado daquela forma. Eu só quis ajudar. Mas de verdade o que me afligia era a memória. O teria acontecido ao meu amor? Onde estaria Júlia? Eu sinto que sei a resposta, mas não quero aceitar. Entro novamente na água onde me sinto seguro.

Tudo que se passa em minha cabeça é o que terá acontecido com ela? Preciso encontrá-la? Essa é a minha vontade e era maior que tudo.

Sinto um cheiro estranho, um odor dissonante do resto naquele lugar. Um odor de morte. A princípio pensei ser o bandido que atacou a moça, mas ainda estava cedo para seu corpo subir. O medo tomou conta de mim. Então nado em busca do cheiro. Quanto mais me aproximo mais meu coração acelera, isso se eu tiver um.

Ao longe eu avisto, o manto vermelho preso entre algumas árvores e raízes dentro da água. Me aproximo a vejo. Seu corpo está inchado e deformado, o vestido vermelho puído. Eu choro enquanto abraço seu corpo. Mesmo entre os odores do rio, e o cheiro de morte, posso sentir seu doce perfume.

Levo ela para a margem para que a polícia encontre seu corpo, ela não pertence aquele lugar. Fico alguns minutos ali sobre seu corpo, a dor é tão profunda que eu preferia estar morto junto com ela. Finalmente escuto polícia vindo fazer as buscas. Com um beijo suave em sua testa eu me despeço.

Quando relutante vou voltar para o rio novamente a luz da lua irradia forte e vejo meu próprio reflexo na água. Aquele não era eu, era um monstro feito de água e plantas, uma criatura saída dos filmes de terror. Eu tendo arrancar as folhas, tentando descobrir se existe um rosto ali embaixo, mas novas tomam o lugar no mesmo instante.

Escuto a polícia chegando atrás de mim, eles atiram novamente, mas eu já tinha desaparecido no rio.

A criatura do cocó. Esse foi o nome que me deram. E naquele lugar eu estava preso, até quando?

 

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