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‘Não! Não Olhe!’ (2022) | Muito além de apenas mais uma invasão alienígena

Jordan Peele entrega um dos melhores filmes do ano dentro e fora das entrelinhas. Recheado de camadas, longa é sempre mais do que parece ser – e isso é maravilhoso.

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Jordan Peele é um dos diretores de maior ascensão em Hollywood nos últimos anos. Depois do sucesso avassalador de “Corra!” (2017), seu primeiro filme, seguido pelo divisivo “Nós” (2019), o diretor de 43 anos retorna com “Não! Não Olhe!” (Nope no original), seu terceiro longa-metragem, dessa vez indo além do terror/suspense, gêneros com quais trabalhou anteriormente, agora incorporando também a ficção-científica em sua fórmula de contar e mostrar histórias.

Vamos lá: enumerar as qualidades de “Não! Não Olhe!” não é um trabalho tão simples, porque o filme, em todos os aspectos e detalhes, é sempre mais do que parece ser.

Na trama, os irmãos OJ (Daniel Kaluuya, protagonista de ‘Corra!’, repetindo sua parceria com Peele) e Emerald Haywood (Keke Palmer, de ‘As Golpistas’) administram o rancho de sua família após a morte de seu pai, decorrente de um acidente. Além de treinar, a família de OJ também “aluga” seus cavalos para comerciais e filmes para a TV. Pouco tempo depois da morte de seu pai, os irmãos começam a perceber que os cavalos estão sumindo do rancho, e a culpa disso é de algo que parece ter vindo… do céu.

A premissa soa familiar, assim como vários outros filmes que já vimos ao longo dos anos sobre invasões extraterrestres. O trailer, por exemplo, vende exatamente isso e não se preocupa em mostrar nada além, fazendo com que o público crie em seu imaginário uma visão linear sobre o tema abordado no filme. Mas, conhecendo os trabalhos anteriores do diretor, sabemos que a história nunca é tão simples como previamente mostrada. E é aí que Peele mostra mais uma vez sua indiscutível genialidade, porque “Não! Não Olhe!” é vendido assim de maneira proposital justamente para o impacto ser sentido durante a experiência de assisti-lo.

Como dito antes, o filme nunca é só o que parece ser, tendo sua detalhada construção através de camadas, e uma ficção com elementos de terror sobre disco voador abduzindo cavalos é apenas a mais básica delas; quanto mais a fundo nessas camadas você adentra, mais grandiosa vai ficando a experiência.

O introspectivo e de olhar baixo OJ, e sua irmã amistosa e comunicativa Emerald.

Antes de qualquer coisa, tenho que deixar bem claro que, ainda que fosse apenas um blockbuster de terror/suspense/ficção, “Não! Não Olhe!” seria maravilhoso por si só; tecnicamente, nunca havíamos visto um trabalho de Peele tão inspirado (ou com tanto orçamento para investir). O longa é um verdadeiro espetáculo em todos os aspectos técnicos: da fotografia que sabe ser misteriosa, tensa e claustrofóbica quando precisa, e grandiosa, viva e aberta quando necessária, aos efeitos sonoros e visuais que dão toda a imersão necessária para sentirmos a tensão entre os irmãos e o disco voador que antagoniza ambos. A mistura de terror com ficção é algo que funciona tanto por conta do talento do diretor, quanto pela equipe técnica que fez um trabalho magistral. É um filme que merece o esforço de ser vivenciado em uma sala de cinema.

Dito isso, “Não! Não Olhe!” com certeza é uma aventura de encher os olhos e prender a atenção do telespectador durante todos os seus 132 minutos. Porém, o melhor está longe de ser isso. Com a direção, o roteiro e o cérebro de Peele por trás, a obra nunca será apenas entretenimento.

Dentro desse blockbuster grandioso, o diretor usa elementos reais da história do show business hollywoodiano para, por trás de toda essa camada – já espetacular – de um embate entre humanos e extraterrestres, fazer justamente o que Jordan Peele faz de melhor: adentrar com força e remoer as mazelas da sociedade, ao mesmo tempo que vai as ressignificando.

Partindo para a trama, todo o arco do macaco Gordy (que se inicia na primeira cena do filme) e do personagem Jupe (Steven Yeun, de Minari e The Walking Dead), que foi indiscutivelmente inspirado em um caso real, serve como uma grande metáfora para criticar a cultura de exploração de pessoas e animais no entretenimento e a sociedade do espetáculo como um todo. Não vou entrar em detalhes, pois não quero soltar spoilers, porém essa subtrama do filme é extremamente importante para a bagagem da trama principal, mesmo que, a princípio, não pareça.

Jupe era um ator mirim em um reality show ao lado do macaco Gordy.

Diferente de “Corra!” e “Nós”, seus filmes anteriores, aqui as críticas sociais de Peele não são tão mastigadas para o público: está – quase – tudo nas entrelinhas.

No início da história, é mencionado por Emerald que seu tataravô foi o jóquei que protagonizou o primeiro conjunto de fotografias sequenciais parar criar um filme, com um vídeo de 2 segundos em looping dele montado em um cavalo, sendo assim a primeira cena em movimento já feita e registrada – e protagonizada por um homem preto. Porém, ele foi apagado da história, assim como sua negritude.

Isso é um fato que Peele trouxe para sua ficção de maneira genial; na história real, a identidade do homem no cavalo é desconhecida até hoje, assim como centenas de milhares de pessoas pretas, que foram apagadas da história por conta dos infortúnios causados pelo racismo. Porém, em seu filme, Peele não só dá nome e sobrenome ao homem (Alistair E. Raywood), como também coloca os protagonistas do filme como seus tataranetos. Uma das características marcantes do diretor é justamente ressignificar e subverter padrões e estigmas construídos por gerações edificadas pelo racismo, subvertendo o papel de figuras pretas tanto na história quanto na ficção, dando o destaque e reconhecimento que elas merecem.

Os irmãos Haywood: Emerald (Keke Paler) e OJ (Daniel Kaluuya).

OJ e Emerald querem um registro para entrar na história, para que, dessa vez, jamais sejam esquecidos, assim como seu tataravô foi. Mas dessa vez não “apenas” um registro com um homem sentado em um cavalo, mas de um visível disco voador que está roubando seus cavalos no rancho, para apresentar ao público o primeiro e único registro em qualidade de algo desconhecido – eles até brincam com o fato de que todos os registros até hoje de OVNIs são da pior qualidade possível.

Fazer essa conexão de um fato histórico com a ficção e atrelar isso a dois protagonistas pretos em um blockbuster de alto escalação é algo que requer não apenas uma originalidade peculiar, mas também um cuidado, respeito e dedicação que Peele tem de sobra para fazer com que tudo se encaixe perfeitamente.

Graças a essa aventura de OJ e Emerald em busca de seu registro que entrará para a história, Peele nos entrega uma verdadeira aula de como fazer cinema em sua essência, com uma história repleta de camadas, simbolismos e metáforas para tecer seus comentários tão importantes e necessários a respeito das lutas sociais e do comportamento da sociedade perante a espetacularização das coisas. “Não! Não Olhe!” proporciona cenas maravilhosas e grandiosas, com momentos de tensão, terror e ficção, tudo ao mesmo tempo, além de um espetáculo visual e imersivo sem tamanho, com um roteiro crescente que nos dá direito a acompanhar um homem preto que começa a história cabisbaixo e recluso, evitando até mesmo olhar nos olhos da pessoas, surgindo então montado em seu cavalo no ato final como um verdadeiro herói, de cabeça erguida e olhando para cima, a uma Keke Palmer esbanjando carisma e deslizando em sua moto em um momento eletrizante referenciando a memorável cena da animação japonesa Akira (1988).

OJ em cima de seu cavalo, agora com um olhar confiante e determinado.

“Não! Não Olhe!” não é só um dos meus filmes favoritos do ano, mas é também o meu favorito da carreira de Jordan Peele. É um filme que fica na cabeça por dias e só melhora quando você pensa nele. Mal posso esperar para ver quais serão os próximos gêneros que Jordan Peele irá se aventurar e nos entregar o que ele sabe fazer de melhor.

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