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O Irlandês | Monumental! Filme caminha para ser a maior obra de Scorsese

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Tão certo como afirmar que Martin Scorsese é um dos maiores cineastas de todos os tempos, é associá-lo quase que de imediato a filmes de máfia, graças principalmente ao brilhante Os bons companheiros (1990), obra prima do diretor em parceria como Robert de Niro e Joe Pesci. De modo que, desde seu anúncio, O Irlandês atraiu uma enxurrada de atenções e expectativas, principalmente por reunir Scorsese, De Niro e Pesci, temática de gangster/máfia, com direito a Al Pacino abrilhantando o projeto.

O Irlandês é baseado no livro do investigador Charles Brandt, “I Heard You Paint Houses”, contando a história do veterano de guerra Frank Sheeran e suas décadas de serviços prestados à máfia italiana, e suas implicações no misterioso desaparecimento do sindicalista, Jimmy Hoffa (Al Pacino).

O roteiro de Steven Zaillian adapta com maestria o material, cuja história se desenrola através do ponto de vista de seu protagonista. Mesmo a cronologia do filme não sendo linear ela em nada prejudica na imersão e na compreensão da história.

“ Eu ouvi dizer que você pinta casas.”

Como esperado, O Irlandês não é só um mero filme de gangsters. É um filme longo, mas está longe da fama de chato e entediante que algumas pessoas vem tentando conceder ao longa. Na verdade, creio que nem o próprio Scorsese tinha o entendimento que sua película de 3h e 29min, tem tudo para se consolidar como o maior filme da carreira do cineasta. Isto porque é um filme recheado de acertos, a começar pelo roteiro.

Scorsese sabe como poucos contar uma boa história, e isso vai muito além dos conceitos tradicionais que compõem um bom filme. O que Scorsese faz em O Irlandês é se aprofundar em diversos aspectos da narrativa, através dos arcos dos seus personagens ao longo de décadas. Ao explorar o crime organizado, o diretor vai além da violência e brutalidade (bem amenas neste filme), de forma bem cadenciada (mas não didática, o que mantém o filme interessante o tempo todo), o longa explica todas as implicações da Máfia, com teorias da conspiração do poder de manipulação, inclusive em grandes acontecimentos da história americana. Os códigos de conduta e a forma como o crime organizado lavava seu dinheiro numa operação complexa movimentam a trama e, indiretamente, a vida dos personagens, conduzindo os eventos que culminaram no tenso desfecho final. Paulatinamente, novos elementos são adicionados, deixando o enredo mais denso e sinalizando para a audiência, não só o rumo que as coisas irão tomar, mas também como a exploração dos personagens é a força principal que movimenta a trama.

Olhando os trabalhos anteriores de Scorsese era de se esperar, claro, uma atenção especial aos seus personagens. É nítido o desejo do diretor em mostrar a fragilidade e os dilemas de seus personagens, e isso em nada se refere ao desejo do diretor de humanizar os atos criminosos cometidos por eles mas, sim, explorar como aqueles homens que são tão temidos, poderosos e intimidadores em seus círculos, acabam atingidos por seus problemas pessoais, muitas vezes decorrentes de seu estilo de vida e suas consequências.

Um exemplo disso é Russell Bufalino do excepcional Joe Pesci. O ator foi convencido a sair da aposentadoria para editar novamente uma parceria de sucesso com Robert De Niro e Scorsese. Pesci da vida a um personagem que consegue ser efetivamente ameaçador e respeitado sem necessariamente o ser fisicamente, de modo que suas ações e seu comportamento são primordiais para consolidar o personagem que é vital para a construção do enredo e a quem, inclusive, o protagonista devota uma religiosa lealdade.

Joes Pesci ao lado de Harvey Keitel

Ainda que poderoso, respeitado e admirado, Russell convive com frustrações de paternidade e a certeza de que é muito mais temido do que respeitado, e isso se reflete principalmente na negativa da filha de Frank, a jovem Peggy.

O trabalho de Pesci é o principal fator para a manutenção de um enredo sedimentado, e não será surpresa nenhuma (será até uma injustiça, caso não aconteça) vermos o ator de 76 anos entre os indicados ao Oscar de ator coadjuvante. Aliás, talvez o filme tenha dois postulantes a este prêmio, isso graças ao desempenho de Al Pacino, na pele do líder sindical, Jimmy Hoffa. O desaparecimento de Hoffa é um dos grandes mistérios da criminologia americana, que teria sido supostamente resolvido pelo depoimento penitente do protagonista.

Al Pacino entrega todo o carisma e eloquência  necessários para alguém que começou do nada e se tornou o manda-chuva de um dos maiores e mais influentes sindicatos americanos. Com o passar do tempo vemos que se manter no poder se tornou uma obsessão para o personagem e como essa obsessão o consome, destruindo seu discernimento. Algo muito perigoso para alguém que precisa equilibrar diversas demandas: interesses políticos, o assédio dos adversários e, principalmente, os desejos da máfia, que usavam o sindicato como fonte principal para lavagem de dinheiro do crime organizado.

Mas, Pacino não atende ao estereótipo de político demagogo ou cego pelo poder. Na verdade seu personagem é um articulador e manipulador nato e, ainda assim, uma figura querida e muito próxima da família e dos amigos. Ao acompanharmos sua jornada é notório como Pacino faz uso de suas expressões faciais e linguagem corporal para compor a transição do personagem, que mesmo numa situação condenada ainda se considera intocável.

Al Pacino, exuberante como o sindicalista Jimmy Hoffa

Completando o trio e personagens principais, Robert De Niro, na pele do “Irlandês”, Frank Sheeran.

Esqueça que De Niro já fez inúmeras escolhas incorretas em sua carreira. É em filmes como este que compreendemos a grandeza do ator, exaltado até hoje por atuações em obras primas como “Taxi Driver” (1976), “Touro Indomável” (1980) e “Os bons companheiros” (1990).

De Niro narra a história. Em sua voz não identificamos louvor ou vergonha de seu passado, mas a necessidade de perdão. Alguém que não entende exatamente o que é redenção, mas que a busca de alguma forma agora que o fim da sua vida se aproxima. É curioso como o personagem teme a morte, à medida em que ela se aproxima, mas fala das suas atrocidades no passado sem o menor traço de remorso. Seu personagem exemplifica muito bem o rigor de Scorsese em construir personagens complexos, e garantir que seu elenco performe a exploração destas complexidades de modo a transparecer claramente a audiência sua personalidade, seus dilemas e seu comportamento.

É justamente desta forma que Scorsese compõe as suas sequências de tensão, ao movimentar os personagens para posições de conflito. É absolutamente angustiante para o público, já que sabemos exatamente quais forças estão envolvidas e quais ações elas tomarão, de modo que durante os muitos minutos que o longa possui, cabe a Scorcese garantir que seu elenco seja suficientemente sagaz em aproximar seu personagem da audiência, de modo que realmente passemos a nos importar com eles quando os momentos tensos chegarem.

Essa construção passa também pela trilha sonora, presente sem excessos com temas cirurgicamente escolhidos. Assim como nos diálogos que são, em sua esmagadora maioria, absolutamente imersivos, com passagens memoráveis (a maioria delas envolvendo os personagens de Pesci e De Niro) e que servem também para situar a audiência no que diz respeito à geografia, cronologia e historicidade do longa.

Mesmo que o trabalho seja quase que irrepreensível, ninguém consegue um resultado tão coerente e realista neste ponto como De Niro. A transformação do personagem ao longo de sua jornada impressiona, muito mais pela lealdade cega aos seus, digamos, “formadores” (A Família Bufalino), o que acarreta uma eficiência incrível mesmo em situações em que o sentimentos são conflitados perante o dever com os Bufalino. Seu background constrói sua personalidade, entregando suas experiências e comportamentos no passado, dando vazão ao seu perfil violento e deveras brutal.

Ao mesmo tempo, o Frank Sheeran de De Niro, perde aquele que é o bem mais precioso para um homem: sua família. Por exemplo, a relação de suas filhas com o pai está muito mais atrelada ao medo que estas têm, do que a amor e respeito, e é justamente esta relação que assombrará Frank Sheeran em seus dias finais. A medida que, com o passar dos anos, e graças ao seu estilo de vida, Frank praticamente perde o amor de sua filha Peggy (Anna Paquin). De Niro (em especial por uma sequência no final do longa), é perfeito ao expor a dor de seu personagem, que talvez busque na reconciliação com a filha Peggy um perdão para o detrimento de sua família durante décadas.

O elenco ainda com nomes como Harvey Keitel e Bobby Cannavale, além do promissor Jesse Plemons.

O Irlandês é uma obra ligada a um jeito de fazer cinema que conversa muito pouco com as gerações atuais. É nítido, por exemplo, a dificuldade de Scorsese em entender como o cinema toma lugar no gosto popular nos dias atuais, e não digo por conta da recente polêmica de Scorcese com a Marvel, mas pela maneira como o diretor concebeu o seu longa.

Robert de Niro na pele de Frank Sheeren

Mais do que isso, é curioso como a Netflix, que representa uma fatia de consumidores oriundos do “padrão internet”, onde cada vez mais as mídias compelem um consumo rápido, ágil e dinâmico, abraçou  o projeto de Scorsese. A chegada do filme no streaming emula a divina experiência de assistir ao filme no cinema, mas em contrapartida oferece uma oportunidade diferente de se consumir a obra que, naturalmente, foge dos padrões comerciais dos filmes anteriores. Essa oportunidade (que o excelente Roma de Alfonso Cuarón, também criou ano passado) pode, ao seu devido tempo, manter vivo este tipo de filme que a cada dia, infelizmente, parece cada vez mais recluso a um determinado tipo de nicho.

Com uma fotografia muito particular, o filme possui enquadramentos que soam como assinaturas da direção de Scorsese, que segue uma estrutura muito familiar às suas outras aclamadas obras, principalmente em momentos construídos a sombra de momentos classudos de Cassino (1995) e Os Infiltrados (2006), este que rendeu um tardio Oscar a Martin Scorsese.

O filme se passa ao longo de quatro décadas, com uma montagem espetacular que garante o ritmo adequado e uniforme a trama. Em momento algum (apesar da duração) o filme se torna cansativo e arrastado, há um cuidado incrível na composição de figurinos e cenários que garantem, junto com específicas linhas de diálogos, a veracidade em situar o longa em seu referido momento na linha do tempo.

Mais do que isso, o filme usa de CGI para rejuvenescer seus personagens, por isso o filme custou mais de US$ 160 milhões. O processo de fato atinge o seu objetivo sem maiores problemas, salvo a movimentação e o tom da voz dos personagens, que por vezes, não condizem com a idade insinuada, mas de maneira alguma esse fator prejudica a experiência e acaba por se resumir a um detalhe estético.

Como a computação gráfica rejuvenesceu De Niro

Não é nenhum exagero dizer que O Irlandês é um filme praticamente irretocável. O longa equilibra perfeitamente seus elementos, de modo a proporcionar uma obra que tende não só a se tornar o maior filme de Martin Scorsese, mas também uma obra histórica, destinada a ser imortalizada como uma das maiores de seu gênero.

É uma história de penitência, de velhice, de lealdade, uma reflexão sobre a vida, sobre a natureza humana e sobre morte na forma intimista de se analisar o conceito. Mais do que isso, é uma produção destinada aos amantes do cinema, sem purismos exagerados ou preconceitos contemporâneos, para mostrar que, em tempos de pregação a diversidade, o gosto cinematográfico não pode ser de maneira nenhuma polarizado.

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