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RPG | A Erudição na Literatura Fantástica

Publicado há
7 anos atrásem
Quais os paralelos entre a nossa história das ciências e os mundos fantásticos? Pegue pena e pergaminho, estamos prestes a mergulhar na mente dos eruditos!
Quando pensamos em conhecimento nos ambientes de literatura fantástica, geralmente traçamos um paralelo com os círculos intelectuais da Europa medieval. E, em muitos casos, esse paralelo é extremamente correto. Dos meistres da Cidadela em Westeros aos clérigos de Tanna-Toh em Arton, passando pelos filósofos de Élada e os acadêmicos da Grande Biblioteca de Elyne, muito do que se considera ciência nesses cenários é extremamente similar ao pensamento corrente na Europa entre os séculos V e XVI (abrangendo algo entre a Idade Média e o Renascimento).
A ciência medieval tinha uma grande ênfase na chamada filosofia escolástica, com grande uso da lógica e do empirismo. A natureza, para eles, era um sistema coerente de leis que podiam ser explicadas unicamente através da razão. Há nos pesquisadores medievais uma busca de explicações para os fenômenos do universo usando uma metodologia científica em constante evolução desde a Grécia Antiga. Para eles a ciência dependia de experimentação, a teoria sendo refutada ou validada através dos inúmeros experimentos. Não existia tanto a divisão entre teóricos e experimentalistas como vemos hoje nos campos da física, por exemplo. Os estudiosos deveriam dominar ambas as artes científicas.
Além disso, havia muita influência da Igreja na educação europeia medieval. Em muitos cenários, existe esse tipo de relação entre igreja e educação. No mundo de Arton, em Tormenta RPG, a deusa Tanna-Toh é uma grande entusiasta da educação. Os clérigos da deusa do conhecimento atuam como educadores, mas seus dogmas não são tão restritos como seriam na Europa medieval. Enquanto na Idade Média a Igreja Católica controlava com mão de ferro o que podia e não podia ser ensinado, a Igreja de Tanna-Toh não guarda nenhum tipo de segredo e não limita nenhuma pesquisa em qualquer campo (muito pelo contrário). De fato, Tanna-Toh é descrita como tendo a “lógica fria dos cientistas”, estando ali pelo conhecimento simplesmente, sem nenhuma inclinação para o bem ou para o mal. A doce ilusão da ciência “pura” e sem sentimentos.
No mundo de George R. R. Martin, seus meistres são descritos como cientistas, conselheiros e investigadores do oculto, da mesma forma que os antigos estudiosos. Os eruditos se debruçavam sobre conhecimentos muitas vezes ignorados pelos demais (que preferia as simples explicações da religião e da sabedoria popular), procurando compreender cada vez mais os mistérios da filosofia natural. A própria Cidadela tem muito das primeiras universidades medievais e dos studia em sua concepção: um local para reunir os estudiosos e aceitar novas mentes prontas para serem ensinadas. A relação de mestre e aprendiz muito comum nos tempos antigos começa a se desfazer na Europa por volta do século XII com as reformas educacionais de Charles Magno. Com um número maior de professores e escolas, o mestre com seu aprendiz tornou-se mais uma regalia para os alunos mais brilhantes. Vemos o mesmo na Cidadela, com meistres e arquimeistres (talvez uma referência aos arquimagos das mesas de RPG) acolhendo noviços e os orientando em seus conhecimentos até serem testados pelos mestres de cada área. No romance O Labirinto no Fim do Mundo, de Marcello Simoni, claramente vemos essa relação de aprendizado tendo evoluído na Universidade de Paris e na Escola Médica Salernitana em 1229 pela figura do magister medicinae Suger.
“Posso lhe ensinar a medir os dias e marcar as estações e na Cidadela de Vilavelha podem lhe ensinar muito mais.” Meistre Luwin em Guerra dos Tronos (George R. R. Martin).
A lógica empregada nesses cenários tipicamente medievais é rígida, composta basicamente por experimentação e comprovação. Principalmente entre os séculos X e XIII, o pensamento intelectual era voltado aos grandes pensadores da Antiguidade, com grande ênfase nas ideias de Platão.
O cenário de RPG Ars Magica, que se passa na Europa Mítica de 1220, mostra bem esse tipo de pensamento, já que o cenário é basicamente a Europa do século XIII com um pouco de magia acrescida. As Artes Liberais (artes liberales no latim) eram a base da educação europeia. Primeiro se aprendia o trivium: a gramática, a retórica e a lógica. Só então se passava ao quadrivium: aritmética (a teoria dos números), a teoria da harmonia musical (a aplicação da teoria dos números), a geometria (a teoria do espaço) e a astronomia (a aplicação da teoria do espaço).
De maneira similar, vemos na Trilogia do Mago Negro, de Trudi Canavan, que a Universidade dos magos preza por esse tipo de educação. As bases teóricas da linguagem e da matemática são lançadas para só depois de dominadas ter acesso aos maiores conhecimentos de magia nas artes do combate, da alquimia e da cura. O mesmo acontece na Crônica do Matador de Reis, de Patrick Rothfuss. Em O Nome do Vento, Kvothe tem de impressionar os mestres da Universidade com seus conhecimentos para ser aceito em suas fileiras.
Certas literaturas fantásticas possuem uma noção mais moderna da educação e do pensamento científico. Ainda que O Nome do Vento e O Temor do Sábio falem de taumatologia e equações que corresponderiam à nossa atual termodinânica e física quântica e em fisiopatia muito avançada para comparar com a medicina dos humores da Idade Média, o tipo de pensamento é muito similar ao que temos na escolástica medieval. No entanto, vemos em Os Dragões de Titânia, de Renato Rodrigues, e na Grande Academia Arcana de Arton em Tormenta RPG, uma abordagem muito mais moderna de universidade. A escola de Talude em Arton e a academia de mestre Demosthenes em Titânia se assemelham extremamente às universidades brasileiras de hoje, com direito a disciplinas no currículo Introdução aos Familiares, Teoria da Magia II e Abjuração I e cursos de reciclagem para magos já formados, respectivamente.
E falar em escolas de magia sem citar a Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts é praticamente um crime! Ainda que seu pensamento não seja muito medieval, a escola de J. K. Rowling traz esse ambiente de aprendizado muito similar às demais, com um professor responsável por cada disciplina, um verdadeiro mestre em seu campo.
Traçar um paralelo entre a ciência no ambiente fantástico e a história mundial de nosso mundo tão sem graça sem as artes arcanas é a o mesmo tempo fácil e difícil. Difícil por conta de toda a carga que trazemos conosco sobre a história de nossas ciências (sejam humanas, exatas ou biológicas) que guiam nossas interpretações. Fácil por ser tão clara sua influência do pensamento científico passado nas estórias de espada e magia. Me despeço deixando uma classe para Tormenta RPG, feita numa adaptação da revista Dragão Brasil, àqueles que desejam ser nada mais nada menos que os estudiosos de suas mesas de jogo: o erudito.
Normalmente descrito como um humano meio-abissal, Bardo 2/Mago 5/Universitário 6, Caótico e Trevoso.