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São Pedro não chamará meu nome – Pt. 1

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Caldeirão de Santa Cruz do deserto, Crato-CE dia 11 de maio de 1937.

              Faz três anos que o padrinho morreu, agora não tinha ninguém entre os poderosos para interceder por nós. Beato José Lourenço fez a prece com a gente naquela manhã, com fé e força iriamos lutar pela terra abençoada por nosso Senhor Jesus e por nosso Padrinho Padre Cícero. Mas eu já antevia o pior, os homens viriam com fogo e ferro, e aqui tem poucos guerreiros, a comunidade era de amor e fé, eles só queriam o direito de trabalhar em paz na sua terra. Mas o pobre não tem direito a paz em terra de gente poderosa, a paz do pobre ameaça a do rico.

           Teve gente indo embora com medo, mas a maioria ficou, queriam acreditar no poder do Padrinho e do Beato, eu já acreditava. Durante anos eu pensei que era amaldiçoado por Deus sem nunca entender por que, até que eu confessei com o padrinho, e ele como homem de Deus me abençoou, disse que o que eu tinha era um dom, e que eu deveria usar em prol dos necessitados.  Falou que, quando eu cumprisse meu dever, ele mesmo falaria com São Pedro para chamar meu nome. Mas alertou que não deveria ter poder ou riqueza ou meu milagre virava a maldição que eu tanto temia. Eu nasci para ser um servidor. E Servidor foi o nome que ele me deu, daquele dia em diante eu seria Francisco Servidor.

            Então aqui eu estou: homem de frente, para defender o povo e ganhar meu espaço do lado do meu padrinho no céu.

            Nós esperávamos atrás das barricadas. Quem podia lutar tava com trabuco na mão e uma peixeira no cóis da calça. A gente ia morrer lutando ou, pelo menos, era isso que eu desejava. Nos preparamos bem, até um fosso foi cavado para atrapalhar a entrada deles, nossa vontade somada ao poder de Deus nos daria a vitória, era o que acreditávamos. Como éramos tolos. Esperamos e esperamos, mas em vez de tropas vieram os aviões, e sobre nossas cabeças choveu o fogo do diabo. Não houve luta. Foi um massacre. As bombas caiam explodindo barro, madeira e carne. O fogo rapidamente lambeu nosso lar que foi tão arduamente construído, tanto suor, sangue e lágrimas tinham sido em vão. Em algumas horas o que anos de trabalho haviam erguido do pó tinha vindo ao pó tinham voltado.

            Quando as tropas a pé finalmente vieram, foi pra dar o tiro de misericórdia. Uns poucos sobraram pra lutar, e esses fizeram um estrago com os paus-mandados do governo, mas era uma luta perdida. Um a um, foram tombando. Eu fiquei por último, só parei quando arrancaram as duas pernas. Antes de perder a consciência eu pude ver o horror nos olhos daqueles soldados.

 ***

Fortaleza-CE, dias atuais.

             Por muitos anos tenho andado perdido no mundo, um homem sem fé, sem rumo, sem vontade. Meus passos perdidos ironicamente me trouxeram a este lugar. Chega ser cômico estar aqui após tantos anos de fuga. Sinceramente não sei se foi escolha ou acaso, mas sei que a vergonha me consome, pois esse caminho eu abandonei há muitos anos e nunca é fácil ser o filho pródigo.

            – Não se intimide meu jovem, essa é a casa do Senhor. Você é bem-vindo aqui. – disse um velho frei de cabeça tonsurada. Tive que sorrir no “meu jovem”.

            – Obrigado Frei. Estou apenas admirando. – na minha frente se erguia a velha igreja de estilo franciscano.

            – Nós dois sabemos que não é por isso que veio. – a ironia em seus olhos era notável, era quase como se soubesse quem eu era.

            – E por que vim então?

            – Veio servir, é claro. – aquelas palavras me atingiram como um raio. – E nós estávamos a sua espera.

            Não havia coincidência ali. De alguma forma aquele sujeito sabia quem eu era, e soube exatamente o que dizer para tocar meu coração aflito. Vergonha, medo, angústia… tudo de uma vez.

            Daí para frente foi um turbilhão, num momento estava aos pés do frei em lágrimas, no outro eu me confessava. Quando tudo passou eu estava de bata marrom, com a cabeça tonsurada.

            Algumas coisas são difíceis de explicar ou entender. É simplesmente mais fácil aceitá-las – e aquilo era exatamente o que eu buscava. O homem peca demais em uma vida só, imagine o quanto eu não pequei na minha. Houve um tempo que minha preocupação era nunca ser chamado por São Pedro. Hoje eu sei que mesmo que meu fim chegue, não escutarei a voz do santo em decorrência das coisas que fiz. Sou um maculado e só esse lugar poder limpar a sujeira de minha alma e de minha vida. Agora viveria uma vida simples de servidão e paz ou, pelo menos, era o que eu acreditava.

            – Nós sabemos quem tu é, Francisco – disse o Frei Albano para mim com seriedade. – E nós vamos precisar da tua benção, assim como Cícero precisou. – completou.

            Com aquelas palavras diretas o abade jogou um balde de água fria naquilo que eu acreditava que seria meu destino naquele lugar, como eu era tolo, a paz nunca seria parte da minha vida, por isso eu ansiava tanto pela morte.

            – Não quero contestá-lo Frei, mas não foi isso que me trouxe aqui.

            – Discordaremos disso meu filho. Tu não é um único que tem benção, o mundo está cheio de iguais a ti, não com a mesma benção, mas com suas próprias. Nem todos usando-as nas graças do senhor, e ai está o problema. Mas esse não é assunto do momento, primeiro meu filho você precisa ser testado.

            – Testado?

            – Sim. Esse não um monastério comum, filho. Sinto informá-lo tão tardiamente. – ele não estava arrependido de verdade. – Somos a Igreja da Balança.

            – Igreja da Balança?

            – Nosso propósito é equilibrar o mundo, para que cada ser humano possa levar uma vida digna até ser julgado por Nosso Senhor.

            – …

            – Nem preciso ressaltar para você o quanto estamos fracassando. – disse ele cheio de tristeza. – Mas agora estamos encontrados as Bençãos do Senhor e finalmente teremos força para sermos efetivos. Mas acredite: sem nosso trabalho e de outros como nós pelo mundo tudo estaria muito pior.

            Ele acreditava verdadeiramente nisso.

            – E onde eu entro nessa história?

            – Você, meu filho, é uma das primeiras Bençãos registradas. Verdade seja dita: não foi com esses olhos que Santa Igreja os viu durante muito tempo. Cícero pode não ser o santo que muitos pregam, mas sempre foi um homem de visão, ele pode ver que dons como os teus poderiam ser usados para a obra do Senhor.

            – Ele que me convenceu que eu não era amaldiçoado, apesar de até hoje existir uma luta em mim sobre essa questão. Ainda assim, Frei, não sei se estou disposto a seguir por essa estrada novamente. Viver um mundo de violência, foi que acabou me trazendo a este lugar. Não sei se quero retornar para o buraco de onde saí.

            – Não se pode chamar de violência a execução da Obra do Senhor.

            – Há alguns anos eu concordaria cegamente com você, mas esse sujeito morreu. Literalmente. Violência é violência, e todos que a praticam sempre tem argumentos que legitimam a sua.

            – Então não irá nos ajudar.

            – Não dessa forma.

            – Entendo. – disse o frei decepcionado.

            – Devo ir embora?

            – Como lhe disse no início, essa é a casa do Senhor, e você é bem-vindo aqui.

            Me retirei para meu claustro, a cabeça cheia de informação e sentimentos que precisariam de uma noite de sono para ser processados.

***

Serra do cruzeiro, Cariri-CE dia 15 de maio de 1937.

             A chuva havia amolecido a terra e eu finamente consegui cavar para fora daquele lugar de morte. Quando finalmente consegui respirar o ar tragado entrou como se cortasse meus pulmões, rapidamente o odor de morte tomou conta. Olhei em volta e vi os contornos daquela vala que ia até se perder de vista. Sequer deixaram o povo ter um velório cristão, enterrados como bichos jogados num buraco sem nome. Homens sem fé e sem coração. Lá estava eu mais uma vez, vivo depois de tudo. A escuridão era profunda e a chuva torrencial. E nenhum outro momento minha longa vida eu estive tão confuso. Primeiro pensei que o padrinho havia mentido para mim. Lutei dei o meu melhor, mas não havia nada que eu pudesse fazer para salvar aquele povo e mesmo assim ali estava novamente de pé. Ou eu não teria sido merecedor do chamado de São Pedro? Essas dúvidas assolaram meu coração naquela noite, sentado no escuro eu chorei lágrimas invisíveis na chuva, com a certeza no coração de que São Pedro não chamaria meu nome, que eu era um amaldiçoado, e que meu Padrinho me abandonou nesse mundo governado pelo cão.

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